Contos de um Futuro Antigo

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Contar uma história, tenha ela algum fundamento real, ou seja, pura invenção, é das mais antigas formas de comunicação que a Humanidade criou. Não podemos afirmar, por não haver prova documental, mas faz sentido imaginar que comunidades muito remotas, ainda no tempo das cavernas, ocupassem parte do seu tempo, à noite, reunidas em torno da fogueira para assar umas carnes e aquecer os corpos enquanto conversavam sobre o dia que findava e o que viria a seguir, contando e ouvindo as peripécias das caçadas em grupo, a dessa manhã e as de tantas outras antes dela. Provavelmente muitas dessas histórias, como aconteceria com outras, criadas depois pelos séculos adiante, coadas pelo tempo e pela memória e estimuladas pela imaginação, haveriam de apresentar narrativas que seriam renovadas, ampliadas e enriquecidas cada vez que voltassem a ser contadas – porque, como diz o povo que disso tem longa experiência, quem conta um conto acrescenta um ponto.

Em regra, o conto é uma história relativamente curta, contada em pouco tempo e em traços largos, revelando alguns aspetos essenciais e deixando outros por desvendar, insinuando com frequência em vez de expor, dando assim a quem lê (ou escuta) a possibilidade de estender a própria imaginação, assumindo-se também como agente do fluir da narrativa e da sua interpretação. Eça de Queirós, o nosso mestre da arte de escrever contos, afirmava, no prefácio aos Azulejos do Conde d’Arnoso (1886), que «no conto tudo precisa ser apontado num risco leve e sóbrio: das figuras deve-se ver apenas a linha flagrante e definidora que revela e fixa uma personalidade; dos sentimentos apenas o que caiba num olhar, ou numa dessas palavras que escapa dos lábios e traz todo o ser; da paisagem somente os longes, numa cor unida».

Depois da série Música nas Cidades (2008-2021), que nos levou de passeio pelo mundo, guiados pelos sons e pelas melodias de cada lugar, e de trabalhos de muita valia sobre aspetos do nosso património, da nossa gente, dos nossos sítios, das nossas tradições, da nossa alma coletiva – O Povo do Tejo (2015), O Vento das Sete Serras (2019) e A Tentação do Mar (2023) –, depois de vários livros em que a objetividade e o rigor tinham de ser tidos em conta, Manuel Fernandes Vicente faz agora uma muito feliz e competente incursão pelo mundo da fantasia, da pura liberdade da escrita, e oferece-nos este seu primeiro livro de contos. Primeiro porque, estou certo, há muitos outros contos que já escreveu e não vêm aqui e muitos mais haverá porque é isso que se espera de tão escorreita e profícua escrita e de tão criativa e inspirada imaginação.

Nascido numa aldeia da Beira Baixa, Manuel Vicente captou na infância o espírito dos lugares pequenos e da gente simples que os habita, bem como o jeito que ela tem para inventar histórias e as contar, arregalando os olhos da miudagem e espevitando-lhe a imaginação e o sonho. Só alguém com essa experiência matricial, alguém que conheceu e privou com «o povo, os que viviam na parte baixa do mundo», poderia escrever, como no conto O Meteorologista, que tradicionalmente, nessas terras distantes e isoladas, onde não chegara o saber da ciência, o estado do tempo se previa «pelo andamento das nuvens, pelo canto dos pássaros, ou pelo uivo sibilante do vento».
Não é decerto por acaso, nem de forma inocente, que, tantas vezes, são aldeias o cenário das histórias que aqui se contam. E humildes, em geral, os seus protagonistas. É nesse universo pequeno e com essa gente modesta que o autor constrói boa parte dos seus contos, desenrolando histórias de vidas simples, muitas vezes ternurentas e cheias de humanidade. É paradigmático O Vagabundo da Harmónica, a propósito de um pobre homem que vagueava pelas aldeias e encantava as crianças com histórias e com o som da sua gaita-de-beiços. Fazia pequenos trabalhos de reparação, recebendo por eles o que lhe quisessem dar. No contexto desses consertos, acontecia por vezes encantar também as mulheres, que tanto podiam ser solteiras como casadas, envolvendo-se até em atos amorosos com algumas delas. São notáveis, neste conto como noutros, não apenas a fluência da linguagem, mas, sobretudo, a sua elegância: para descrever esse tipo de episódio, moral e socialmente condenável no pequeno mundo da aldeia, nada se afirma por claro, apenas se dizendo que «iam ambos atrás do ímpeto do momento, que nem ele nem ela trocavam por nenhum paraíso prometido, pouco lhes importando nessa altura que a alma fosse ou não imortal, e muito menos qual o seu destino».

Na correnteza dos contos vão desfilando amores e ódios, generosidades e avarezas, opulências e misérias, porque de tudo isto são feitas a alma humana e as relações entre as pessoas. E com frequência, como é próprio do conto, que também com esse propósito foi inventado, Manuel Vicente deixa entrever uma mensagem, uma conclusão a retirar da história, uma lição de moral como ensinamento para a vida. N’A Mineralogista, diz o bisavô à pequena Nadir que a verdadeira riqueza é «aquilo que nós podemos desfrutar com os sentidos, e as experiências que nos oferecem, abrem a nossa mente, e isso é uma coisa que nunca se gasta». Segundo o ancião, também o conhecimento e a sabedoria se podem infinitamente multiplicar, se se fizerem mais e mais perguntas, mas isso implica «humildade, desapego, bondade, meditação e muitas provas». Para além de nos permitir sonhar, o conto, quando bem contado, pode também pôr-nos a pensar e a refletir sobre nós, sobre a vida, sobre o mundo.

Há alguns contos que abordam as questões relacionadas com as novas tecnologias, com os problemas que suscitam e com os perigos que representam quando não são adequadamente usadas, como tantas vezes acontece. A Última Tentação de Ray Fagundes e Os Abismos de Norma ilustram, de forma sublime, esta verdadeira «intoxicação digital» em que muita gente anda mergulhada. No primeiro, uma mulher, Violeta, fartou-se «daquele mundo colonizado por mil subtilezas tecnológicas que tinham trazido tantas facilidades, mas levara as pessoas». No segundo, a jovem Norma passava «mais de dez horas diárias a gravitar como um satélite desgovernado e tonto em torno do seu smartphone, do tablet e dos dispositivos de ecrã conexos, e a dar vassalagem, entre o trabalho e o lazer, às suas infindáveis redes sociais e a aplicações absolutamente inúteis». Tornou-se «um androide comandado à distância, uma criatura-robô manipulada com controlo remoto». O conto, como nestes casos, pode ser um aviso, um abanão, um poderoso grito de alerta.

São notáveis e não podem ficar sem menção certas descrições de figuras ou de paisagens, bem como o desenrolar dos enredos e a construção dos diálogos que deixam bem evidente o domínio das técnicas que fazem de um escritor um contista.

Aqui e ali os relatos são salpicados com notas de humor, requintadas, que nos deixam sem condições para suster o riso, se não mesmo para reter a gargalhada. Marcelete Falsete, já és Major! – poderão comprovar – é disso um bom exemplo.

Os contos são acompanhados de ilustrações que os valorizam. Dados a ler aos ilustradores, os desenhos que daí resultaram são, também eles, uma certa leitura de cada conto. Porque um conto, sendo lido por mil pessoas, mil leituras decerto terá e todas elas diferentes. Este mundo da fantasia por onde o contista avança e nos convida a entrar é um universo que tem como único limite o limite da nossa imaginação. Algum limite, em geral, a imaginação há de ter. Mas, como este livro bem nos mostra, cuido que não a do meu amigo Vicente!

António Matias Coelho

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Manuel Fernandes Vicente nasceu em Castelo Branco em 1952, estudou e especializou-se em Química dos Produtos Naturais na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra e foi professor de Matemática, Ciências Naturais e Ciências Físico-Químicas na Escola E/B Dr. Ruy d’Andrade no Entroncamento, a cidade onde vive. Foi fundador e chefe de redação da Revista Nova e do jornal Notícias do Entroncamento, colaborador nacional e repórter do Público, cronista no jornal musical Blitz e no portal Entroncamentoonline, além de uma colaboração dispersa noutros órgãos de comunicação social.
Publicou as obras O Vento das Sete Serras, O Povo do Tejo, e quatro volumes de uma série dedicada às geografias musicais Música nas Cidades.

Informação adicional

Dimensões (C x L x A) 15 × 22 cm

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